Saturday, November 12, 2005

Comunismo, por Roberto Campos - Parte I

O texto sem contexto
(trecho do discurso de posse de Roberto Campos na Academia Brasileira de Letras)
Comentei com maravilhamento alguns textos de Dias Gomes. Falta falar sobre o contexto histórico dos anos da guerra fria, que ele e eu vivenciamos, fazendo ambos apostas divergentes sobre o curso da história. Tanto em seu discurso de posse nesta Academia [de letras] como em sua auto-biografia, Dias Gomes desfolha um libelo contra os chamados "anos de chumbo" do período militar, com seus excessos repressivos e mutilação das liberdades, esquecendo-se de interpretar a peripécia brasileira no contexto da guerra fria. Não se menciona sequer minimamente alguns aspectos construtivos, como o fato de o Brasil nesses anos ter passado da retaguarda incaracterística dos emergentes para a posição de oitava potência industrial do mundo. E tudo se passa como se o autoritarismo no Brasil fosse uma exótica perversão somente acontecida no Trópico do Capricórnio.

Um mínimo de análise histórica comparativa teria levado Dias Gomes a fazer um balanço mais benígno. Samuel Huntington, o famoso politólogo de Harvard, defendeu a tese das ondas e refluxos periódicos da democratização no mundo. Na década dos 60 e começo dos 70 teria havido uma guinada autoritária mundial, de tal forma que um terço das sociais democracias que funcionavam no pós-guerra acabassem interrompendo seus processos democráticos.

Na América Latina surgiram vários regimes, que O'Donnell e Huntington chamam de "autoritarismos burocráticos". No Brasil e Bolívia, em 1964; na Argentina em 1966; no Peru em 1968; no Equador em 1972; no Uruguai em 1973. Houve golpes militares na Coréia do Sul em 1961; na Indonésia em 1965; na Grécia em 1966. Em 1975, foi imposta a lei marcial nas Filipinas e Indira Gandhi declarava um regime de emergência na Índia. A rigor, o pioneirismo da guinada autoritária, desta vez em favor da esquerda, foi o de Fidel Castro em Cuba, o qual ascendeu ao poder em 1959, aderiu ao comunismo pouco depois e aparentemente não tem planos para deixar o poder.
É paradisíaca a visão até hoje mantida por vários intelectuais de esquerda que o Brasil em 1964 tinha uma opção tranqüila entre a liberal democracia e a social democracia. A real opção era entre um autoritarismo de esquerda e um autoritarismo de centro direita, que se dizia transicional. No Brasil, tivemos um autoritarismo encabulado, que se sabia biodegradável, que admitia o pluripartidarismo, que mantinha, ainda que manipuladas, instituições democráticas, que postulava a restauração democrática como objetivo último da evolução social. Isso é diferente dos autoritarismos totalitários, ideologicamente rígidos, sanguinários quanto a dissidentes, e convictos de que o determinismo histórico asseguraria a ditadura da classe eleita - o proletariado.

Melancólicas veramente eram nossas alternativas nos primeiros anos da década dos 60, quando a guerra fria atingia seu apogeu:- ou anos de chumbo ou anos de aço. Alhures, os anos de aço duraram 72 anos na União Soviética, quase meio século na Cortina de Ferro e ainda há espécimes ditatoriais sobreviventes.

Dias Gomes tem razão em verberar, a posteriori, a idiotice da censura, o sofrimento de idealistas torturados, o amargor dos exilados. Que esses dilaceramentos do tecido social não se repitam mais. Mas os anos de chumbo tiveram derretimentos que jamais ocorreriam se tivéssemos "anos de aço". Um "derretedor de chumbo" já citado, foi Adonias Filho que combatia as ideologias mas respeitava os ideólogos. Outro foi nosso ilustre confrade Roberto Marinho. As "Organizações Globo", tidas como bastião do capitalismo reacionário, deram, no interregno autoritário, guarida a vários intelectuais e artistas de esquerda, que receberam sustento sem exigência de conformismo esterilizante.

Desde 1969 foi lá que se abrigaram Dias Gomes e Janete, por quase três décadas, para produzir obras que serão o encanto de várias gerações. Não sofreram constrangimentos ideológicos, como reconhece o próprio Dias. E os profissionais da organização o ajudaram-no muitas vezes a driblar a censura e a preservar, sob pseudônimos, a mensagem fundamental do dramaturgo.

Uma vez, conversando com o nosso ilustre confrade Roberto Marinho, apontei-lhe contradições entre o tom conservador dos editoriais, de um lado, e os cabeçalhos e noticiários enviezados, de outro, que desmereciam a classe empresarial e as idéias liberais.

Definitivamente, nosso confiável confrade nem sempre dá conselhos confiáveis. Quando lhe pedi que partilhasse comigo o segredo de sua fecunda longevidade, respondeu-me: saltar a cavalo e fazer pesca submarina. - Logo eu... que não gosto de cavalos e detesto o cheiro de peixe.

Digo estas coisas para acentuar o contraste entre a repressão dos "anos de chumbo" e o que seria a repressão dos "anos de aço", que teríamos de atravessar se vitoriosa a aposta de muitos de nossos intelectuais na opção comunista. Consideremos o diferencial de sofrimento.

Dois dos maiores nomes da literatura mundial - Boris Pasternak e Solzhenitsyn - ganharam o prêmio Nobel em 1958 e 1975, respectivamente, durante os anos de aço. E experimentaram incríveis perseguições. Foram ambos expulsos da União dos Escritores Soviéticos, o que naquele regime fechado significa desemprego e morte civil. Solzhenitsyn foi preso em 1974, acusado de traição pela publicação, no exterior de sua grande obra "O Arquipélago Gulag". Na Rússia somente 25 anos depois foi autorizada sua publicação na revista literária "Novy Mir". Foi exilado da União Soviética, passando a viver nos Estados Unidos e só então poude ter acesso ao seu Prêmio Nobel.

Pasternak teve de renunciar ao Prêmio Nobel. Sua obra prima - Dr. Zhivago - que chegara ao exterior em 1957, através de manuscritos contrabandeados, só foi autorizada na Rússia em 1985, 28 anos depois! Consta que só escapou dos expurgos de Stalin, nos anos 30, porque havia traduzido para o russo poemas de poetas georgeanos, compatriotas de Stalin.

Dolorosa foi a carreira de Ana Akhmatova, talvez a maior poetisa russa desde Puskhin. Seu marido foi executado em 1921 e seu filho preso e exilado para a Sibéria em 1949, ambos por "não conformistas". O Comitê Central do Partido Comunista condenou sua obra poética em 1946 por seu "eroticismo, misticismo e indiferença política". Foi também expulsa da União dos Escritores Soviéticos e por três anos proibida de escrever qualquer coisa. Sua mais longa obra, "Poema Sem Herói", escrita entre 1940 e 1962, só teve sua publicação autorizada 14 anos depois.

Outra grande figura da física nuclear, Sakharov, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1975, foi em 1980 despojado de todos os seus títulos e vantagens como grande cientista, e exilado para a cidade fechada de Gorki. Só em 1986, após a "glasnost" de Gorbachev foi autorizado a retornar a Moscou.

Definitivamente os "anos de aço" foram mais brutais que os "anos de chumbo".

Nem adianta dizer que a utopia socialista não se realizou na Rússia, mas realizar-se-ia alhures. Há uma brutalidade ínsita no marxismo-leninismo, que se manifestou tanto no socialismo louro da Europa Oriental, como no socialismo moreno do Caribe, no socialismo negro dos africanos e no socialismo amarelo da China e do Vietnam. A violência é da natureza da besta ...
(fim da Parte I)

1 Comments:

Blogger Troveiro said...

Roberto Campos justifica o golpe direitista como um contra-golpe contra um regime de esquerda que não alcançaria os progressos promovidos pelos militares. Talvez, ou talvez as mudanças seriam de outra natureza, mas não se pode saber. Tampouco pode se justificar como um contra-golpe ou uma questão huntintoniana de democracia instável um regime autoritário. Teria Jango apoio suficiente nos militares para executar um golpe comunista? Será que o apoio de extrema esquerda que ele conseguiu na campanha de reforma agrária seria suficiente para levar a cabo um regime de exceção de outra natureza? Só se pode especular, mas nunca justificar a escolha pelo fim da democracia.

6:12 AM  

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